Textos no Idioma-fonte – Mito e Verdade

No último dia 30 de setembro, celebramos o dia internacional da tradução.

Queremos aproveitar essa oportunidade para deixar um alerta sobre um dos detalhes da arte de traduzir que não pode, de forma alguma, ser esquecido nessa data significativa para os tradutores de todo o mundo.

Visto que traduzir não significa apenas verter palavras de um idioma para outro, pois, tem muito mais a ver com cultura, emoção, afinidade, bom senso e meditação – habilidades próprias apenas do ser humano –, o exemplo deixado por São Jerônimo como tradutor obstinado, sensível e comprometido com a precisão deve nortear nossa trajetória como tradutores.

E é, exatamente, sobre isso – comprometimento com precisão – que queremos alertar nossos leitores.

Então, vamos ao mito. Trata-se de uma tendência natural entre a maioria dos tradutores.

MITO

Não podemos questionar textos no idioma-fonte que foram escritos por falantes nativos.

Esse raciocínio baseia-se na falsa premissa de que um falante nativo domina seu idioma materno e, portanto, sabe o que está fazendo.

É preciso deixar claro, no entanto, que, em termos de comunicação verbal, qualquer falante nativo de inglês ou português – por menos letrado que seja –, sabe como se comunicar e ser entendido, mesmo utilizando uma forma dialetal de sua língua materna para se comunicar.

O que está em jogo aqui, no entanto, é a comunicação escrita. Tradutores que falam português como primeira língua podem ser levados a nutrir um raciocínio equivocado, achando que "como não sou falante nativo de inglês, não posso questionar um texto escrito em inglês"!

Foi-se o tempo em que os textos escritos em inglês eram produzidos apenas por falantes nativos (quer fossem bons escritores ou não) ou por autores que tinham domínio absoluto do idioma inglês, mesmo como segunda língua.

Atualmente, qualquer pessoa, de qualquer idioma, escreve textos em inglês. Como isso nos afeta?

Vamos, então, à

VERDADE

Na maioria dos casos, falantes nativos que escrevem textos sobre sua área de atuação não foram treinados para escrever. A estruturação correta de um texto depende de habilidades que são adquiridas de forma sistemática, e não apenas por ser falante nativo. O que isso significa?

Como a tradução não é uma mera versão de palavras, mas, sim, de ideias, mesmo que o texto tenha sido escrito por um falante nativo, se ele não foi treinado para escrever ou não providenciou que o texto fosse submetido a uma revisão gramatical e estrutural cuidadosa por um profissional nativo e habilitado, a probabilidade de esse texto conter erros, inconsistências e improcedências é muito alta. Isso piora ainda mais se o texto em inglês foi escrito por um falante não nativo!

A não ser textos literários que, normalmente, são escritos por autores que conhecem os meandros da gramática e dos estilos que regem seu idioma materno, textos técnicos – de qualquer segmento – mesmo quando escritos por falantes nativos – podem conter uma diversidade de inconsistências que vão tornar a tradução um verdadeiro martírio. Por quê?

Quando não há clareza e, muito menos, capricho na estruturação correta das frases, nossa incumbência – como tradutores – de entendermos as ideias por trás das palavras (sugerimos que você leia um artigo do Lighthouse intitulado "The Letter Kills – The Spirit Gives Life") pode ficar altamente comprometida. Isso ocorre com muita frequência quando os autores escrevem apenas para si mesmos e seus pares! Ou seja, o autor não demonstra nenhuma preocupação em tornar o texto inteligível, explícito, desambiguado, óbvio e, facilmente, decifrável por nós tradutores.

Habilidades Necessárias para Produzirmos Textos Escorreitos.

É preciso deixar bem claro que, só porque o texto em inglês foi escrito por um falante nativo, isso não significa que tudo que foi escrito foi estruturado corretamente. Em geral, profissionais como engenheiros, técnicos, médicos e advogados que escrevem artigos técnicos não fizeram um curso específico que os prepararam para desenvolver textos escorreitos. Para que possamos escrever corretamente, são necessárias habilidades adquiridas de forma sistemática. Em outras palavras, é preciso passarmos por treinamento ou estudarmos a fundo ambos os idiomas – fonte e alvo – para adquirirmos a competência ou a devida desenvoltura linguística para produzirmos textos apurados.

Nossa experiência nos permite afirmar que falantes nativos – tanto de inglês quanto de português –, têm limitações consideráveis para estruturar textos em sua língua materna. Não é porque o autor é falante nativo do idioma-fonte que o texto deve ser, automaticamente, considerado como exemplar. É preciso ter isso em mente a todo momento durante a tradução!

Não raro, observamos uma falta de habilidades específicas nesse respeito.

É aí que entra em cena a capacidade crítica do tradutor.

Como você poderia criticar um texto em inglês escrito por um falante nativo se inglês não é sua língua materna? Isso em si já constitui um elemento inibidor que coloca os tradutores na defensiva, pois acabam se convencendo de que seria impróprio criticar um texto escrito por um falante nativo. Então, o que fazer?

Todo tradutor tem de conhecer a fundo o par de idiomas com o qual trabalha. É uma tarefa árdua, mas, não há como traduzir da forma correta, ou seja, traduzir ideias, se você não tem domínio considerável de ambos os idiomas. Caso contrário, você corre o sério risco de assumir que, se o texto-fonte foi escrito por nativo, então, ele tem de ser considerado como correto e ponto final. Ledo engano!

Cabe usarmos aqui – de forma bem apropriada, por sinal –, uma expressão em inglês que nos ensina com precisão qual deve ser nossa abordagem nesse respeito:

NEVER TAKE THINGS FOR GRANTED

O que isso significa para nós tradutores? Significa que textos escritos por falantes nativos podem estar – e é isso o que, normalmente, acontece – eivados de erros, inconsistências e equívocos gramaticais e de estilo. Assim sendo, cabe a nós tradutores evitar a reprodução dessas improcedências estruturais na língua-alvo, tendo como norma a expressão acima que nos encoraja a 'NUNCA ASSUMIR AS COISAS COMO GARANTIDAS', ou seja, o texto-fonte pode conter erros crassos, mesmo tendo sido escrito por um falante nativo.

Quem de nós nunca se deparou com um texto-fonte escrito em português por um engenheiro ou técnico falante nativo e teve de recorrer a ele diversas vezes para fazer a pergunta clássica: "O que você quer dizer com essa frase?".

Ao se deparar com esse tipo de desafio, tente identificar termos e expressões usados de forma inapropriada e estruture o texto no idioma-alvo de forma transparente e fluídica. Caso você não tenha acesso ao autor do texto, faça perguntas elucidativas. Por exemplo:

  • O que o autor está querendo dizer aqui com essa frase específica?
  • Tendo como base o contexto que já traduzi, como eu diria isso de forma clara e inteligível em bom português ou inglês?
  • Como estruturar essa frase de forma correta no idioma-alvo?
  • Será que essa preposição, esse verbo ou esse advérbio quer dizer, exatamente, o que me veio à mente à primeira vista?
  • Não estaria o autor sendo demasiadamente sintético ao se expressar? E se isso for verdade, como transmitir a mesma ideia, estruturando corretamente o texto no idioma-alvo?

E aqui vale ressaltar um detalhe extremamente importante.

Diferentemente do português – uma língua verbosa por excelência –, o idioma inglês se caracteriza pela forma sintética com que as ideias são expressas na comunicação escrita. Às vezes, isso pode chegar a extremos e se transformar numa verdadeira armadilha para tradutores, pois o autor do texto-fonte pode ser levado – como sempre ocorre – pelo ímpeto de economizar palavras, de tal forma a prejudicar o entendimento do tradutor/leitor.

É fácil sermos levados por um entendimento equivocado da frase no texto-fonte quando o autor escreve de forma extremamente resumida como se coubesse a nós – leitores ou tradutores –, a obrigação de inferir corretamente o que estava na mente dele naquele momento da escrita. Preguiça mental? Falta de cultura linguística? Não importa, o fato é que podemos ser desencaminhados por esse tipo de escrita. Daí, a necessidade de ficarmos atentos a essas 'pegadinhas' que podem, facilmente, nos levar a produzir um texto no idioma-alvo igualmente equivocado e mal estruturado, o que chamo de "reprodução e perpetuação do erro"!

Vamos citar alguns exemplos reais para nos ajudar a ter uma visão bem mais clara de como é preciso estarmos atentos às diferenças estruturais entre inglês e português.

TRADUÇÃO DE PORTUGUÊS PARA INGLÊS

EXEMPLO 1

Inserir o processo referente do AJS do item a ser solicitado a dúvida.

Observe que o autor da frase acima – embora possa ser um excelente técnico – demonstra muito pouca habilidade no tocante a construir uma frase simples de forma correta e bem estruturada. Se você traduzir frases como essa sem antes proceder a uma análise crítica de sua clareza e, sobretudo, sem ter certeza de sua intelecção, você vai correr o sério risco de comprometer sua reputação como tradutor comprometido com precisão.

A tradução abaixo é um exemplo real que ilustra essa falta de comprometimento.

Insert the process referring to the AJS of the item to be requested the doubt.

Um exemplo de tradução correta, no entanto, seria:

Insert the AJA process relative to the item from which the doubt is to be requested.

EXEMPLO 2

Após a conclusão do furo, o mesmo deverá estar limpo e manter suas paredes estáveis.

O autor da frase acima – possivelmente, um engenheiro – pode ser um profundo conhecedor do assunto em sua área de atuação, porém, não demonstrou ter nenhuma habilidade para escrever corretamente. Se você não reestruturar essa frase (mesmo que mentalmente) antes de passar a traduzi-la, o resultado será, sem dúvida alguma, desastroso! Veja abaixo a tradução original.

After the conclusion of the hole, the same should be clean and keep its walls stable.

Depois de corrigida, a tradução ficou assim:

Following the completion of the hole, it shall be cleaned and its walls shall be kept stable.

Vejamos agora um cenário diferente. O texto no idioma-fonte foi bem elaborado, mas o tradutor... bem, ele acabou viajando na maionese.

TRADUÇÃO DE INGLÊS PARA PORTUGUÊS

EXEMPLO 1

(TEXTO ORIGINAL) While other employees might be excited about this opportunity, it would likely not be ideal for Tereza. Traveling to the trade show might create a hardship for Tereza, who would need reliable care for her children and father.
(TRADUÇÃO) Enquanto outros funcionários podem ficar entusiasmados com essa oportunidade, ela não seria ideal para Tereza. Viajar para um espetáculo comercial pode causar apuros para Tereza, que precisa de cuidados confiáveis para suas crianças e seu pai.

Observe que, na tradução acima, o tradutor não teve a menor preocupação em encontrar equivalentes exatos confiáveis e, o que é pior, quase que traduziu literalmente todo o texto original, sem se preocupar com o alvo de todo tradutor, a saber, verter ideias, e não palavras.

(TRADUÇÃO REVISADA) Mesmo que outros funcionários fiquem entusiasmados com essa oportunidade, ela não seria a oportunidade ideal para Tereza. Participar de uma feira pode trazer problemas para Tereza, pois teria de providenciar uma pessoa confiável para cuidar de seus filhos e de seu pai.

Na tradução revisada acima, o texto no idioma-alvo foi estruturado de forma bem diferente do texto original, com uma nítida preocupação com fluidez e consistência.

EXEMPLO 2

(TEXTO ORIGINAL) However, misperceptions about diversity can...
(TRADUÇÃO) No entanto, percepções falsas sobre a diversidade podem...

Percebeu que foi utilizada a expressão 'percepções falsas' para verter o termo inglês "misconceptions"? Basta ler a frase traduzida para percebermos que algo está errado. A expressão "percepções falsas" foi uma escolha totalmente equivocada.

(TRADUÇÃO REVISADA) Entretanto, entendimentos equivocados sobre a diversidade podem...

EXEMPLO 3

Você definiria a frase a seguir como "simples e curta que não apresenta nenhum desafio"? Se é assim que você considera frases desse tipo, está na hora de mudar seu conceito.

(TEXTO ORIGINAL)
Clara leaves the meeting unsure of where to begin.
(TRADUÇÃO de quem acha que frases curtas são 'mamão com açúcar')
Clara deixa a reunião incerta de onde começar.
(TRADUÇÃO de quem nunca assume nada como garantido)
Clara sai da reunião sem saber por onde começar.

CONCLUSÃO

"Never Take Things for Granted"

Tenha sempre em mente essa máxima. Nunca assuma que textos originais, escritos por falantes nativos (de inglês ou português) são, necessariamente, textos escritos corretamente – de fato, na maioria das vezes, não são. Não se deixe levar pelo raciocínio equivocado de que "como não sou falante nativo de inglês, não posso questionar um texto escrito em inglês". Pode e deve!

Todo tradutor tem de conhecer a fundo o par de idiomas com o qual trabalha, sobretudo o idioma-alvo. É uma tarefa árdua e demorada, pois requer dedicação, persistência e muita pesquisa, mas, não há como traduzir ideias, se você não tem domínio considerável de ambos os idiomas.

Não corra o risco de comprometer sua reputação. Critique o texto original e defina se é necessário reestruturá-lo (mesmo que mentalmente) para que sua tradução nunca pareça uma tradução, mas, sim, um texto original.

O AVRO dx é, sem dúvida alguma, uma poderosa plataforma que tem ajudado tradutores de todo o mundo não só a reduzir o tempo de tradução quanto, também, a entregar traduções coesas e confiáveis.